Dez anos após matar e esquartejar o marido, Elize Matsunaga planeja publicar o livro autobiográfico “Piquenique no Inferno”, que escreveu à mão na prisão, para pedir perdão à filha do casal, que está impedida de ver desde 2012. Ela quer contar à garota que assassinou Marcos Matsunaga sozinha, para se proteger das ofensas e agressões cometidas por ele.
A expectativa dela é a de que a menina, atualmente com 11 anos, possa ler a obra um dia, quando estiver adulta, e conhecer a versão da mãe para o que aconteceu: desde sua origem humilde até os relatos de ter sido vítima de violência sexual na adolescência e doméstica quando se casou.
Por decisão da Justiça, a guarda da filha está com os avós paternos, que proíbem o contato da criança com a mãe.
O crime foi cometido em 19 de maio de 2012 no apartamento do casal, na Zona Oeste de São Paulo, e teve repercussão na imprensa por envolver uma bacharel de direito casada com um empresário herdeiro da indústrias de alimentos Yoki. Ele tinha 42 anos à época; ela, 30.
“Minha amada [filha], não sei quando você lerá essa carta ou se um dia isso irá acontecer. Sei o quão complicada é nossa história, mas o que eu escrevo aqui não se apagará tão fácil”, escreve Elize, atualmente com 40 anos, numa carta incluída na obra.
O g1 teve acesso com exclusividade a trechos das 178 páginas do livro, falou com os advogados de Elize, mas não conversou com a bacharel.
No manuscrito, feito num caderno com o desenho de crianças na frente de uma escola, ela conta sua vida antes, durante e depois de ter sido presa e julgada pelo crime.
Essa versão de Elize para o crime já era conhecida da polícia e da Justiça, mas é a primeira vez que ela mesma decide transformar o relato em um livro. As informações chegaram até a ser usadas por sua defesa no seu julgamento para sensibilizar os jurados. Numa das passagens, por exemplo, a bacharel conta ter sido estuprada pelo padrasto quando tinha 15 anos.
“Quando a penetrava, Elize sentia uma dor cortante com a sensação quente de seu sangue e a reação inútil de seu corpo. Cedeu sua virgindade à violência”, escreve.
Prisão até 2028
Em 2016, Elize foi condenada pela Justiça a 19 anos, 11 meses e um dia de prisão em regime fechado por homicídio qualificado e ocultação de cadáver. Mas em 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reduziu a pena dela para 16 anos e três meses.
Segundo a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), Elize conseguiu a progressão de regime e atualmente cumpre pena no semiaberto na penitenciária feminina de Tremembé, no interior paulista.
Elize conta no livro que foi estuprada pelo padrasto quando tinha 15 anos. Ela usou o nome fictício de Paulo para falar dele. Ao lado, a bacharel conta que atirou para se defender das agressões de Marcos — Foto: Reprodução/Arquivo pessoal
Por segurança, Elize optou por trabalhar dentro da prisão. Lá ela se dedica à costura, ganha seu salário e pode sair em todos os feriados, tendo de retornar depois ao presídio. A previsão da SAP é a de que ela seja solta em 20 de janeiro de 2028, quando termina sua condenação. Depois disso, ela pretende abrir sua própria empresa para costurar roupas para animais.
“E como o fim é sempre um novo começo, me atrevo a dizer que não termino minha vida na prisão”, escreve Elize no livro.
Cartas com pedidos de casamento
Enquanto continua presa, Elize conta no livro que recebe centenas de cartas de vários estados. São de pessoas que se sensibilizaram com sua história e de admiradores apaixonados. Entre as mais curiosas estão aquelas com pedidos de casamento.
Em alguns trechos do livro, a bacharel usa a primeira pessoa para contar sua versão, noutros se refere a sim mesma como “Elize”. Dá, também, uma dica da escolha do título do livro: “Seria assim o inferno? Ou seria pior, como a visão dantesca?,” escreve a bacharel sobre estar presa, condenada e sem poder ver a filha.
Vídeo mostra Elize Matsunaga chorando enquando respondia às perguntas do juiz — Foto: Reprodução
E também conta por que escolheu usar a cor vermelha da caneta para contar nas páginas do caderno o que passou. “Só uma vida escrita em vermelho, sangue e vinho”, relata.
“Elize tem algumas opções de publicação e pretende assinar com a editora após ser colocada em liberdade”, diz ao g1 o advogado Luciano Santoro que, ao lado da esposa, Juliana Santoro, a defende. A expectativa é a de que futuramente o caderno possa virar uma obra oficial escrita pela própria autora e vendida em livrarias.
Antes do crime, Elize era aluna de Luciano, professor de direito na faculdade. Ele pediu à Justiça o livramento condicional dela para cumprir o restante da pena fora da prisão, em sua casa. O juiz determinou então que a presa passe por um exame criminológico antes de decidir. O teste serve para saber se ela tem condições de receber a liberdade condicional. A expectativa dos advogados é a de que isso ocorra até o fim deste ano.
O teste ainda não foi feito. Ele serve para saber se a condenada tem condições de voltar a conviver em sociedade. Se o obtiver, terá de cumprir medidas restritivas, como se apresentar frequentemente no fórum para informar se está trabalhando, e ficar recolhida à noite em sua casa.
O crime
O empresário foi baleado na cabeça com uma das 34 armas que o casal tinha na residência. Quatro eram de Elize, incluindo a pistola usada no crime. As demais pertenciam a Marcos. Atualmente, parte delas está sendo vendida pela família do empresário.
Elize alegou à época que atirou em Marcos para se defender dele, que discutiu com ela e lhe agrediu com um tapa no rosto ao descobrir que Elize havia contratado um detetive particular para seguir o marido. O profissional havia descoberto mais uma das traições do empresário e o filmou com uma garota de programa, sua amante.
Marcos, que já havia sido cliente de Elize no passado, quando ela se prostituía, gritou, segundo a bacharel, que tiraria a guarda da filha dela e a mataria.
Com medo de novas agressões e ameaças, já que contou ser sido vítima de violência doméstica em outras ocasiões, ela teria disparado a esmo para se defender.
“Atira, sua fraca! Atira! Sua vagabunda! Atira ou some daqui com sua família de bosta e deixa minha filha. Vc nunca mais irá vê-la. Acha que algum juiz dará a guarda a uma puta?”, escreve Elize no livro sobre o que, segundo ela, Marcos teria dito.
“A cabeça de Elize parecia um torvelinho. Um caos. Um turbilhão de palavras e sentimentos, entre eles o medo, tão perigoso… Foi então que o dedo no gatilho fez seu trabalho…”, continua.
Depois de ter baleado Marcos, ela cortou o corpo em seis partes: cabeça, braços, tronco e pernas. Colocou o cadáver esquartejado em malas e foi de carro até Cotia, na região metropolitana, onde as dispensou no mato.
Os restos mortais foram encontrados em 27 de maio de 2012 pela polícia. Elize foi presa dias depois e confessou o crime. A Mitsubishi Pajero da bacharel, usada para transportar o marido, continua na garagem do prédio onde o casal morava. Ela pretende vender o veículo um dia.
Para a advogada Juliana, sua cliente foi vítima de violência psicológica e doméstica por parte do marido. “[Marcos] passou a cometer uma série de abusos emocionais, taxando Elize de louca, humilhando e trabalhando com muita dominação sobre ela, que enfim, culminou com esse desastre, com essa tragédia, até por que essa casa tinha muitas armas.”
Mas para o Ministério Público (MP), o motivo do crime não foi passional, mas sim financeiro: Elize queria ficar com o seguro de vida que Marcos tinha feito no nome dela, no valor de R$ 600 mil. José Carlos Cosenzo, que foi o promotor do caso à época, não foi localizado pelo g1 para comentar o assunto nesta semana.
“Toda história tem dois lados. É preciso compreender o outro lado e entender o contexto como um todo”, disse Luciano Santoro.
“Naquele contexto de sofrimento e violência psicológica que ela sofria, qualquer pessoa que estivesse naquele mesmo cenário cometeria aquele crime”, disse Juliana. “Extremo abuso, de humilhação, de traição… essas circunstâncias levaram a esse crime. Agressões eram contínuas.”
“Ela agiu sob violenta emoção. Ela praticou o ato após uma injusta ação da vítima”, disse Luciano.
No livro, Elize comenta que “com sua vida forjada em violência, decepções, amor, alegrias e esperanças, os altos e baixos da vida nunca foram tão evidentes”.
“Peço perdão, de coração aberto, por todas as brigas, as palavras ríspidas e pela infelicidade do convite que fiz à morte”, escreve Elize para Marcos.
Elize e a filha
A guarda provisória da garota, que fez aniversário em abril, está com os avós paternos desde agosto de 2012. A filha tinha 1 ano quando a mãe cometeu o crime. A criança dormia sozinha no andar superior do imóvel e, segundo Elize, não viu nem ouviu nada.
“Espero muito ansiosamente que um dia você me perdoe. Não pretendo justificar o injustificável”, escreveu Elize para a filha. “Não há a menor possibilidade de desistir de lutar por ti, minha filha.”
A reportagem apurou que os advogados que defendem os interesses dos pais de Marcos entraram com duas ações na Justiça contra Elize envolvendo a filha do casal. Como ela é uma criança, os processos estão em segredo.
Um pedido tramita na Vara da Infância e Juventude e requer a destituição do poder familiar de Elize sobre a filha, e o outro, que está na Vara da Família, solicita a alteração do nome da menina em seu registro civil.
No caso de Elize, a destituição do poder familiar dela sobre a filha significaria deixar de ser mãe da criança: seu nome seria apagado da certidão de nascimento da menina, ficaria sem direitos e deveres sobre a garota (como participar da educação dela, receber visitas etc). O nome de Marcos como pai seria mantido.
Já o processo a respeito da alteração do registro civil da filha de Elize e Marcos pede a retirada dos sobrenomes maternos (Araújo Giacomini) e de um sobrenome paterno (Kitano) da certidão de nascimento da menina. A garota teria apenas o “Matsunaga” após o primeiro nome.
A alegação dos advogados é que os nomes da família de Elize e o Kitano são associados ao assassinato de Marcos e podem traumatizar a menina, que seria vítima de bullying. Caso ela os consulte na internet, por exemplo, poderiam surgir fotografias e matérias do caso que a traumatizariam. Esses processos ainda não foram julgados.
O g1 apurou que a Justiça decidiu em 2013 suspender temporariamente os direitos e deveres de Elize sobre a filha até decidir a respeito deles. Essa medida significa, em tese, a suspensão do poder familiar, antigamente chamado de “pátrio poder”.
Pela lei, presos têm direito a receber visitas de seus filhos menores, sob supervisão, desde que os crimes que cometeram não tenham sido praticados contra eles ou deixado traumas nas crianças.
Os advogados de Elize contaram que há alguns anos a família de Marcos negou um pedido de sua cliente para ver uma foto atual da filha. Os advogados dos avós paternos teriam dito que isso colocaria a menina em risco, já que a mãe poderia querer ir atrás dela depois de saber como a garota é atualmente.
Enquanto isso, Juliana e Luciano buscam acordos judiciais para que sua cliente possa ter contato com a criança algum dia. Numa das audiências, um dos avós contou que a neta soube quem foram seus pais e o que havia ocorrido com eles.
Procurada pelo g1 para comentar o assunto, a advogada Patrícia Kaddissi, que defende os interesses dos avós paternos da menina, afirmou que, “por se tratar de questões e processos que envolvem segredo de Justiça, prefiro não me manifestar”.
Violência doméstica
Nascida há 40 anos em Chopinzinho, no Paraná, Elize conheceu Marcos quando era garota de programa e, segundo parentes, viveu o sonho de encontrar o príncipe encantado como a personagem vivida pela atriz Julia Roberts, que se casa com um rico empresário, interpretado por Richard Gere, no filme “Uma Linda Mulher”.
Após o nascimento da filha, Elize sugeriu que o casal fizesse terapia para salvar o casamento. Um reverendo também foi chamado para dar orientações a Marcos. Vinte e cinco dias antes de cometer o crime, a bacharel havia telefonado para a Polícia Militar (PM) para relatar que foi ameaçada pelo marido.
“Não há dúvida. Eu estava convencido à época, e continuo dez anos depois convencido da mesma maneira. O que aconteceu ali não foi um resultado de violência doméstica ou que a Elize sofreu uma explosão emocional. Não. Houve um crime premeditado. Houve um homicídio qualificado seguido de esquartejamento”, disse Luiz Flávio Borges D’Urso, advogado da família Matsunaga e assistente de acusação à época.
Fonte: g1