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O paraíso das más intenções

Por Arthur Dutra

Lazarus Morell era um sujeito que, dentre outras infâmias, era capaz de pregar o Evangelho de São Paulo por mais de uma hora para distrair os fiéis enquanto seus comparsas furtavam os valiosos cavalos que estavam “estacionados” do lado de fora da igreja. Ele é um personagem do grande escritor argentino Jorge Luis Borges em um dos contos de “História universal da infâmia”.

Morell vivia nos Estados Unidos no começo do século XIX, mais precisamente nas vastas plantações de algodão que margeavam o Rio Mississipi. Tais lavouras eram plantadas e mantidas por milhares de escravos que, mesmo sob o indigno jugo da força bruta, mantinham vivo o desejo por liberdade.

E era para atender essa universal demanda humana que Morell montou seu “negócio”, que funcionava da seguinte forma: seus capangas escolhiam um negro escravizado e propunham que ele fugisse. Uma vez conseguindo, o escravo seria vendido numa fazenda distante e receberia uma porcentagem dessa venda, além de ser ajudado numa outra fuga, depois da qual seria levado para um Estado livre e aí então teria sua tão sonhada liberdade. Mas isso nunca acontecia. Sempre apareciam despesas não explicadas e o escravo tinha que ser vendido novamente, e novamente, até que sua vida era tirada de maneira vil e traiçoeira, por temor de que, livre, o ex-escravo entregasse o rentável esquema de Lazarus Morell.

Mas Morell foi traído, e para não ser preso ele foge e decide retornar para se vingar, só que comandando uma sedição de negros revoltados e leais a ele. Consciente ou não, a vingança serviria para abalar o desprezível sistema escravagista. Só que o levante não ocorreu em razão da morte de Morell por uma banal congestão pulmonar. Mesmo assim, dois dias depois de sua morte, os negros, inspirados nos planos de Morell, ainda se sublevaram em busca de abolir a escravidão, mas foram violentamente sufocados.

Outros personagens da ficção se notabilizaram por darem uma contribuição para uma boa causa, mesmo que para atender um interesse bastante particular. O filme Três homens em conflito, de Sergio Leone, se passa em plena Guerra de Secessão Americana (1861-1865) e mostra a corrida de três sobreviventes do Velho Oeste (O bom, o mal e o feio) por um tesouro enterrado numa cova no cemitério militar de Sad Hill. Mas para chegarem lá, precisavam cruzar um rio onde está sendo travada uma batalha pelo controle de uma ponte. Sem pensarem muito, Tuco e Lourinho (personagem de Clint Eastwood), com a chancela de um Coronel idealista do Exército de Abrahan Lincoln, se encarregam de explodir a ponte e com isso paralisam o conflito. Então eles atravessam o rio em segurança e chegam até o cemitério onde estava o ouro.

O infame Lazarus Morell e os homens do Velho Oeste mostram que as boas causas quase sempre recebem a colaboração até mesmo de sujeitos de caráter no mínimo duvidoso, movidos por interesses muitas vezes diametralmente opostos à própria causa a que servem. De modo que aquela velha máxima de Ernest Hemingway de que quem está ao seu lado na trincheira importa mais do que a própria guerra, nem sempre é tão levada a sério.

Assim é a humanidade, e sempre será.

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