Muito se fala atualmente sobre o Nth Room, um escândalo de abuso sexual virtual em massa cometido por um número estimado de 260 mil homens coreanos, usando um aplicativo de mensagens, o Telegram. O aplicativo é conhecido pela sua segurança, sendo que seu conteúdo é codificado e não rastreável. O aplicativo também conta com salas de bate-papo auto destruíveis, tornando suas mensagens desaparecidas para sempre após o tempo estipulado pelos participantes.
Um homem, que se auto-denominava Baksa (Doutor) – agora identificado como Cho Joo Bin de 25 anos – se apoderou deste aplicativo para criar grupos onde vendia vídeos de vítimas de abuso sexual. Ele criava vários níveis de salas de bate-papo, a sala 1, sala 2, sala 3, etc, e para cada sala era estipulado um valor que variava entre 80 dólares e 1.200 dólares, onde os vídeos mais grotescos e abusivos eram compartilhados.
Das 76 vítimas identificadas nos vídeos, 16 eram menores de idade, a mais nova tendo apenas 9 anos e o principal alvo dos abusos sendo adolescentes. Quem pagava por esses vídeos eram homens de grande poder aquisitivo, incluindo artistas famosos, astros do esporte e CEOs de estabelecimentos populares.
Como eles tinham acesso a esses vídeos?
Os “operadores”, homens que trabalhavam para Cho, caçavam mulheres e meninas online e se acreditava que o faziam através de hacking e phishing roubando suas informações pessoais como número social, identificação, endereço, fotos pessoais. Mais tarde foi descoberto que o principal autor dos crimes contava com um amigo que trabalhava para o governo e tinha acesso a todas essas informações. Esses dados eram usados como chantagem e ameaças para que essas mulheres fizessem exatamente o que os operadores queriam. Outro meio muito usado era encontrar mulheres em vulnerabilidade financeira, eles ofereciam grandes quantidades de dinheiro para que elas fizessem o que eles pediam, e claro, nunca eram pagas, se tornando então reféns dos vídeos que já haviam feito.
Incialmente os pedidos para as vítimas incluíam gravar vídeos de si mesmas se despindo e se masturbando, que seriam então enviados aos operadores e distribuídos entre as salas N “de nível inferior”. Esses vídeos eram posteriormente usados para ameaçar e chantagear essas mulheres, que então eram obrigadas a criar mais e mais vídeos, com conteúdos cada vez mais pesados para serem postados nas salas de “níveis superiores.”
Muitos dos pedidos mais absurdos incluíram auto mutilação dos mamilos, escrever a palavra “escrava” na própria pele usando uma faca, inserir objetos cortantes na vagina, e alguns homens chegaram a pagar para estuprar as mulheres dos vídeos. Quando as ameaças não funcionavam, os operadores usavam outra tática. Eles incitavam os homens do Nth Room a estuprar essas mulheres como forma de punição. Eles divulgavam suas informações pessoais – local de trabalho, ou estudo, endereço, nome – em salas específicas para isso, encorajavam esses homens a encontrar a vítima, a estuprar, filmar e postar o vídeo nas salas de bate-papo. Esses atos cumpriam três objetivos: puniam a vítima, alertavam outras garotas a não resistir e forneciam material pornográfico mais lucrativo para vender, pois as filmagens de estupro violento são mais caras.
Além disso, Cho também falou sobre possuir câmeras escondidas de celebridades, conseguidos pelos seus próprios staffs. Ele também afirmou que tinha vídeos pré-debut de idols e estrelas coreanas, mas apenas membros que pagassem os maiores valores podiam acessar esses vídeos.
“Como deletar uma conta do Telegram”
No Naver, o maior site de busca e informações da Coreia um dos cinco termos mais buscados na semana passada foi “como deletar uma conta do Telegram” por adolescentes e jovens por volta dos 20 anos. E enquanto nos Mom Cafes (fórums dedicados a mães) as maiores buscas e tópicos são como agir caso suas filhas tenham sido abusadas, nos Dad Cafes (cafés para pais) os tópicos de maior acesso e procura são sobre como deletar sua conta do Telegram, ou se é ilegal ter sido um membro do Nth Room. Por algum motivo, apesar da quantidade de homens envolvidos no escândalo, a grande mídia tem dado muito pouca atenção para o problema, e as maiores discussões e especulações tem acontecido em grande parte nas redes sociais. Além da alta culpabilização das vítimas por parte dos homens que participaram do Nth Room, jornalistas que tentaram se aprofundar no assunto e denunciar o caso foram ameaçados e chantageados, sendo obrigados a não dar a atenção devida para o tema.
A Impunidade
De acordo com fontes sul-coreanas, os membros das comunidades online estão cientes das Nth Room do Telegram desde pelo menos fevereiro de 2019, mas em vez de denunciar para a polícia, esses homens imploravam pelo link que os levava até o Nth Room.
O único homem a denunciar o crime foi Kim-Jae Su (nome alterado). No entanto, depois que ele entrou em contato com as autoridades em fevereiro de 2019, a polícia não demonstrou interesse em investigar o caso. Vendo que a punição por esses atos de violência contra as mulheres era improvável, o próprio Kim-Jae Su logo se tornou líder de um dos Nth Room. Em novembro de 2019, o jornal sul-coreano The Hankyoreh publicou uma entrevista com Kim-Jae Su. Depois de novembro, outras grandes mídias começaram a cobrir o caso, mas de acordo com feministas coreanas, redes de TV públicas influentes não se interessaram pelo caso.
É sabido que pelo menos uma das vítimas cometeu suicídio.
A professora Lee Soo-jeong diz que as leis atuais da Coreia do Sul só permitem que os autores do Nth Room recebam no máximo 3 anos e meio de prisão. Ela diz que suas sentenças provavelmente serão reduzidas e quando saírem ainda terão todos os dados para re-extorquir e explorar as vítimas.
O que está por trás do Nth Room
Anterior à era da internet, quem praticava o tráfico sexual de mulheres tinha que lidar com muitas e muitas complicações, como fazer uma mulher deixar o seu país e fisicamente a trancar em alguma localização. Isso significava que os criminosos geralmente precisavam providenciar serviços básicos, como comida, água, banheiros e raramente mas possivelmente assistência médica às mulheres escravizadas. Além disso eles tinham que lidar com o corpo físico real das mulheres presas, que engravidam, sangram todos os meses ou pegam doenças sexualmente transmissíveis.
Esse cenário ainda é muito real e frequente, mas esses criminosos descobriram que os homens preferem assistir pornografia ao invés de fazer sexo. Especialmente se o corpo da mulher for explorado de forma violenta e desumanizada, a tornando apenas um meio para que eles atinjam o orgasmo, fazendo da indústria pornográfica um negócio muito rentável, mas também muito cruel, sujo e abusivo contra mulheres.
De acordo com ativistas coreanos, todos os dias duas mulheres ou meninas se tornam escravas sexuais na Coreia do Sul, e mais de 10 mil homens acessam diáriamente o seu conteúdo compartilhado.
Segundo vários relatos, Cho foi voluntário em um orfanato em Incheon nos fins de semana de outubro de 2017 até muito recentemente. Ele chegou a aparecer em um artigo publicado em uma mídia online em novembro passado. O período de sua atividade voluntária coincide com o período pelo qual é acusado de exploração e agressão sexual das vítimas e à distribuição de vídeos no Telegram. A polícia suspeita que ele começou a operar as salas de bate-papo do Telegram no final de 2018 e continuou até sua prisão.
Cho se formou em comunicação e informação em uma faculdade em Incheon em 2018, escreveu artigos e colunas para o jornal da escola e eventualmente se tornou editor-chefe.
Sua família deixou a casa onde morava, em Incheon, após a prisão de Cho. Talvez em uma tentativa de se afastar do caso e do culpado, e por medo de possíveis retaliações.
Atualmente existem duas petições em andamento para que a punição pelo crime seja equivalente a sua gravidade, sendo que a Coreia do Sul é conhecida pelas penas leves para crimes sexuais.
Para punir todos os autores, incluindo aqueles que pagaram pelos serviços e Cho Joo Bin: https://www1.president.go.kr/petitions/586885
Para liberarem todas as informações daqueles que participaram do Nth Room:
https://www1.president.go.kr/petitions/586880
Fonte: Say K