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‘Maternidade é escolha, não obrigação coercitiva’, diz Rosa em voto sobre o aborto

Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber. Foto: Agência Brasil

A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, votou nesta sexta-feira (22) na ação que discute a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ministra, relatora do caso, se posicionou em plenário virtual, quando os votos são inseridos no sistema eletrônico.

No entanto, o ministro Luís Roberto Barroso pediu destaque do processo e, por isso, o caso será levado em análise presencial, em plenário. Ainda não há previsão de quando isso deve ocorrer.

No voto, Rosa Weber tratou de temas como direitos das mulheres, discriminação de gênero, e defendeu uma mudança de foco no tratamento dos direitos reprodutivos femininos. Veja abaixo os principais pontos:

Competência do Supremo

No voto, a ministra discute sobre a competência do STF para analisar o tema. Segundo Rosa Weber, há quem argumente que a criminalização do aborto só poderia ser alterada por decisão do Congresso, responsável pela elaboração de leis.

No entanto, segundo a ministra, cabe ao Judiciário analisar se as decisões tomadas pelo Legislativo e Executivo seguem as regras e princípios fundamentais da Constituição, que garante direitos da minoria. Por isso, ela defende que o Supremo precisa enfrentar o tema, já que foi provocado.

“Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas (minorais) possam ser causados pela vontade da maioria”, afirma.

Religião, ética e moral

Rosa Weber afirma que não trata no voto de questões sobre a moral religiosa envolvendo o aborto, e refuta a tese de que existe o direito absoluto à vida desde a concepção. Segundo a ministra, o debate baseado nessas duas questões tem dificultado a “conversação democrática” sobre o tema.

Segundo a ministra, as questões religiosas e morais de cada um divergem, e o direito tem de se aplicar a todos.

“Isso não quer dizer que questões de ética e moralidade sobre o aborto sejam irrelevantes do ponto de vista jurídico ou para a formação social de determinada comunidade política”, afirma Rosa Weber.

“Contudo, a esfera da moral privada não pode ser confundida com a esfera da moral pública, e principalmente com o espaço de atuação do Estado de Direito, na restrição dos direitos fundamentais”, continua.

Direito à vida

Segundo Rosa Weber, não existem “consensos sobre início da vida humana no campo da filosofia, da religião e da ética”, nem da ciência. A ministra diz que a definição de quando começa a vida “não pertence ao campo jurídico”. No entanto, reconhece que são necessários “consensos mínimos” para a tomada de decisões.

A ministra aponta uma série de argumentos para mostrar que o texto da Constituição só garante direitos fundamentais, como à vida, aos “nascidos no Brasil”. Por isso, defende que a garantia de direitos só ocorre após o nascimento, e não desde a concepção.

“Essa conclusão resulta mais evidente quando se observa que não há referência em qualquer passagem do texto constitucional aos não nascidos, seja na condição de embrião ou de feto”, diz. Segundo a ministra, “não basta ter vida, ela tem que ser digna em suas variadas dimensões”.

Para reforçar a tese, Rosa Weber aponta que no Código Penal, por exemplo, a pena por um homicídio não é equiparada à de um aborto.

“Praticar o infanticídio não gera penas tão graves quanto cometer um homicídio, que, por sua vez, é punível de forma mais exasperada do que a prática de um aborto”, argumenta. “Fica evidente que, para o direito penal, a vida não traduz valor único e absoluto.”

A ministra afirma ainda que há um “falso alarde” em torno do “suposto consenso” de que o feto ou embrião já tem direitos fundamentais.

Segundo Rosa Weber, na discussão sobre o aborto, não há que se falar em embate do direito à vida entre gestante e feto. A ministra afirma que essa é uma premissa equivocada já que, para ela, a Constituição só garante esse direito fundamental à mãe.

Direitos das mulheres

A ministra faz no voto um resgate da luta feminina pela igualdade de direitos, e diz que a Constituição de 1988 garantiu às mulheres “a condição de cidadania plena, com igualdade de condições e respeito”, mas afirma que é permanente a busca pelo fim da discriminação motivada pelo gênero.

Segundo Rosa Weber, um dos pontos que ainda precisa ser efetivado na sociedade é a “autodeterminação como elemento estruturante da dignidade da mulher”. Ou seja, a garantia de que elas podem tomar as próprias decisões sobre o corpo e a vida.

A ministra afirma que, na lei, existe discriminação disfarçada de proteção.

“A título de proteção da mulher na sua dimensão biológica mais distintiva, a gestação, e sob o véu da legalidade aparente, encobrem-se autênticas discriminações que impõem papeis sociais às mulheres, sem qualquer margem de respeito e consideração à sua liberdade e autodeterminação pessoal, afastando-as da cidadania plena e igualitária na construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária”, diz Weber.

Segundo a ministra, “a maternidade não há de derivar da coerção social fruto de falsa preferência da mulher, mas sim do exercício livre da sua autodeterminação na elaboração do projeto de vida”.

“Compete à mulher, na fruição de seus direitos fundamentais, tomar a decisão pela maternidade, por meio da gravidez ou por outras fórmulas, à exemplo da adoção”, continua.

“A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas.”

Direito à liberdade reprodutiva

A ministra argumenta que o direito à liberdade reprodutiva, ou seja, à liberdade sobre ter filhos ou não, integra o direito à saúde, previsto na Constituição. Segundo Weber, já há decisões do STF que apontam que questões relacionadas ao tema são “protegidas da intervenção estatal injustificada”.

“Isso porque trata-se de decisões que pertencem ao campo da autonomia privada e da intimidade da mulher ou do casal, não cabendo ao Estado interferir, sob pena de configuração de ato de violência institucional”, diz.

Discriminação em serviços de saúde

A ministra afirma que existem tratados internacionais sobre a necessidade de garantir a efetividade do direito à saúde das mulheres, o que inclui as questões reprodutivas. Também aponta que essas normas proíbem discriminação das mulheres pelos prestadores desses serviços.

“Ao assinar e ratificar os Tratados Internacionais acima elencados, assim como aprovar os Planos de Ação derivados das Conferências do Cairo e de Pequim, o Estado brasileiro comprometeu-se, é o que exsurge da leitura dos textos normativos e interpretativos internacionais, a tomar medidas legislativas ou executivas adequadas aos fins estabelecidos, quais sejam: promover e proteger os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e adolescentes, a partir da perspectiva da saúde pública”, diz.

Segundo a ministra, é preciso “reformar a legislação restritiva de criminalização da mulher por condutas e decisões respeitantes a sua liberdade reprodutiva”.

Exagero na responsabilidade penal

A ministra argumenta que é excessivo responsabilizar mulheres criminalmente por conta de uma gravidez indesejada, ainda mais em um contexto no qual a educação sexual e os métodos de contracepção não chegam de forma facilitada a toda a população.

“Considerado esse fator ineliminável da vida humana, a falibilidade, fica claro que a falha no planejamento, ou no uso dos medicamentos e procedimentos seguros de contracepção, não pode, por si só, ensejar a responsabilização criminal da mulher”, diz.

“A falha na contracepção, repito, é fenômeno completamente alheio ao controle da mulher. Ao assim exigir e regulamentar a conduta, impõe-se responsabilidade com restrição excessiva e desmedida sobre a mulher, visto que não está a seu alcance a segurança dos medicamentos ou procedimentos contraceptivos”, continua.

Segundo Rosa Weber, a tendência internacional é tratar o problema da liberdade reprodutiva das mulheres como uma questão de saúde pública e de direitos humanos, não como questão criminal.

A ministra argumenta que o direito penal só deve ser aplicado em último caso, e de forma justificada. No caso do aborto com até 12 semanas de gestação, Weber afirma não ver justificativa para a criminalização.

“Primeiro, a coerção penal não oferece desestímulo à situação vivenciada pela mulher que toma a decisão pela interrupção da gravidez. Segundo, não cumpre com o dever de proteção ao nascituro enquanto bem jurídico tutelado pela norma penal”, diz.

Segundo a ministra, é ilusório considerar que a criminalização é capaz de resolver o problema. “Ao contrário, a criminalização vulnera os princípios fundamentais do direito penal e os direitos das mulheres, enquanto não protege o feto”, afirma.

Aborto como questão de saúde pública

Para Rosa Weber, a resolução da questão envolve uma mudança de entendimento, para “investir nos fatores que promovem o planejamento familiar no contexto da liberdade reprodutiva da mulher. Ou seja, no desenho de fórmulas institucionais de promoção da saúde sexual e reprodutiva e da tutela dos direitos das mulheres, com informação adequada, oferta dos métodos contraceptivos mais modernos, acesso ao aconselhamento de planejamento familiar e acolhimento em situações de violência sexual, física ou psicológica”.

“No lugar da intervenção extrema do Estado, caracterizada pela coercitividade, revela-se proporcional e adequado a adoção de políticas de estímulo à responsabilidade (feminina e masculina), de perfil preventivo no acesso à educação sexual e aos meios de promoção da liberdade reprodutiva consciente”, diz.

“Nesse cenário, a maternidade não figura como ato derivado da coerção, mas como decisão autônoma da mulher, em conformidade com o projeto de vida por ela delineado”, continua.

Segundo a ministra, é necessário reconhecer a “insuficiência do tratamento do aborto como problema de ordem penal” e adequar “as ações do Poder Público voltadas para a construção de um sistema de proteção social dos direitos reprodutivos das mulheres, baseado na prevenção da gravidez indesejada, com educação sexual e acolhimento, bem como na prestação das condições materiais necessárias ao aconselhamento a respeito da maternidade, com apoio psicológico e financeiro”.

Rosa Weber afirma ainda que “abortos inseguros e o risco aumentado da taxa de mortalidade revelam o impacto desproporcional da regra da criminalização da interrupção voluntária da gravidez não apenas em razão do sexo, do gênero, mas igualmente, e com mais densidade, nas razões de raça e condições socioeconômicas”.

“Não há de falar em proteção do valor da vida humana sem igualmente considerar os direitos das mulheres e sua dignidade em estatura de direitos fundamentais e humanos”, diz a ministra.

“Olhar para as consequências do problema e resolvê-lo com base em uma única lógica, a da continuidade forçada da gestação, em nome da tutela absoluta de único bem – nascituro – em um conflito policêntrico, não é o caminho.”

Proposta

Na conclusão, a ministra votou por excluir do Código Penal o trecho que institui o aborto como crime, no caso de gestações de até 12 semanas. Weber afirma que, à época em que a lei foi criada, as mulheres foram silenciadas.

“À época, enquanto titular da sujeição da incidência da tutela penal, a face coercitiva e interventiva mais extrema do Estado, nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas!”

“Transcorridas mais de oito décadas, impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito”, afirma.

“A dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a igualdade como reconhecimento, transcorridas as sete décadas, impõem-se como parâmetros normativos de controle da validade constitucional da resposta estatal penal”, finaliza.

Fonte: g1

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