Por Renato Cunha Lima Filho
Outro dia me lembrei de um pronunciamento antológico de meu saudoso Tio, o ex-senador e poeta Ronaldo Cunha Lima, no Senado da República.
A lembrança decorreu quando li um destes decretos que restringem e cerceiam a circulação de pessoas por conta da pandemia, repletos de palavras em inglês.
Na ocasião o eloquente senador potiguar Geraldo Melo presidia a sessão plenária, quando o Poeta Ronaldo relatou em seu pronunciamento um dia de seu cotidiano somente com galicismos e anglicismos, na intenção bem humorada de exemplificar o quanto estávamos cercados de palavras “importadas”.
“…Fui ao freezer, abri uma coca diet; e saí cantarolando um jingle, enquanto ligava meu disc player para ouvir uma música new age.
Precisava de um relax. Meu check up indicava stress. Dei um time e fui ler um bestseller no living do meu flat. Desci ao playground; depois fui fazer o meu cooper. Na rua, vi novos outdoors e revi os velhos amigos do footing. Um deles comunicou-me a aquisição de uma nova maison, com quatro suites e até convidou-me para o open house. Marcamos, inclusive, um happy hour. Tomaríamos um drink, um scotch, de preferência on the rocks. O barman, muito chic, parecia um lord inglês. Perguntou-me se eu conhecia o novo point society da cidade: o TimeSquare, ali no Gilberto Salomão, que fica perto do Gaf, o La Basque e o Baby Beef, com serviço a la carte e self service. Preferi ir ao Mc Donald’s, para um lunch: um hamburger com milk shake. Dali, fui ao shopping center, onde vi lojas bem brasileiras, a começar pelas Lojas Americanas, seguidas por Cat Shoes, Company, Le Postiche, Lady, Lord, Le Mask, M. Officer, Truc’s, Dimpus, Bob’s, Ellus, Arby’s, Levi’s, Masson, Mainline, Buckman, Smuggler, Brummel, La Lente, Body for Sure, Mister Cat, Hugo Boss, Zoomp, Sport Center, Free Corner e Brooksfield. Sem muito money, comprei pouco: uma sweater para mim e um berloque para a minha esposa. Voltei para casa ou, aliás, para o flat, pensando no day after, o que fazer? Dei boa noite ao meu chofer, que, com muito fair play, respondeu-me: Good Night…” Ronaldo Cunha Lima.
— Incrível, não é?
Esse pronunciamento foi aparteado pelos saudosos senadores Arthur da Távola e Jefferson Peres, como pelos colegas Bernardo Cabral, Pedro Simon e Eduardo Suplicy.
— Que diferença de Senado!
Um discurso belíssimo e importante que parece ter sido em vão. Diversas foram as tentativas parlamentares de diversas correntes políticas e ideológicas de proibirem o emprego de palavras estrangeiras, pelo menos em documentos e normas públicas.
Em breve pesquisa parece que as tentativas esbarraram nas comissões parlamentares de ciência e tecnologia, que deram pareceres desfavoráveis por conta dos tecnicismos, que não teriam similares na língua portuguesa.
Infelizmente é difícil alguém falar hoje em dia sem pronunciar alguma palavra estrangeira ou aportuguesada, mas a questão inaceitável e abusiva é ler decretos governamentais com “lockdown”, “delivery”, “drive thru” e até um tal “take away”, que nunca tinha ouvido falar.
Qual a dificuldade de usar o velho e bom português? Invés de “Lockdown”, usar confinamento, isolamento, distanciamento, no lugar de “delivery”, usar entrega a domicílio ou no local.
Até mesmo o “drive thru” e essa novidade de “take away”, que não tem tradução literal, mas que poderiam ser substituídos com o simples passar ou retirar o pedido no local.
A questão não é tolher o jeito que as pessoas falam, como já dizia o velho guerreiro, nosso querido Chacrinha, “quem não se comunica se trumbica”.
Cada um fala como preferir ou souber, errado ou certo, desde que o objetivo da comunicação seja alcançado, evidentemente. Embora seja muito mais simples dizer “iniciar”, que o estrambólico “inicializar”, oriundo da informática, que só complica. Será que “deletaram” o verbo apagar de nossas mentes?
Na prática o nosso riquíssimo idioma nos oferta um infinito “guarda-roupa”, onde cada ocasião dita o linguajar mais adequado, seja coloquial, formal, técnico, eclesiástico e por aí vai, com todas as características regionais e socioculturais.
— É como dançar conforme a música
“…Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar
Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?…”
Noel Rosa
A Constituição Federal expressamente diz que a língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil em seu décimo terceiro artigo e pelo menos os documentos oficiais mereceriam esse cuidado de evitar estrangeirismos.
A Academia Brasileira de Letras no geral e as respectivas Academias de Letras estaduais precisam sair em defesa da língua portuguesa em seus estados. Não se trata de uma bobagem, mas de uma defesa do patrimônio maior de um povo.
Além de respeito, vamos amar o nosso idioma, “última flor de lácio, inculta e bela”, um verso de amor de Olavo Bilac no seu soneto Língua Portuguesa, que colocarei na íntegra no final deste artigo.
A língua de Camões, de Fernando Pessoa de qualquer pessoa, de qualquer um que nasceu nesta ou em outras terras onde aportaram os navegantes portugueses, precisa ser defendida.
Nossa língua incorporou termos indígenas e dos afrodescendentes e imigrantes, ela é viva, mas não podemos incorporar qualquer coisa a nossa sopa de letrinhas.
O nosso povo, os nossos poetas, compositores e escritores, o nosso indelével patrimônio, que nos une nesta vastíssima Nação precisa e merece cuidados.
Em tempo:
Que o jornalista potiguar Gaudêncio Torquato, novo imortal da academia norte-rio-grandense de letras, advogue com seu prestígio nacional essa causa, que é nossa. Na Paraíba, não tenho dúvidas, que o aguerrido José Nêumanne Pinto empunhará espadas nesta luta. Cito dois jornalistas, dois acadêmicos, por um motivo simples e direto, todo esse estrangeirismo nesta pandemia tem gêneses na imprensa, na comunicação social.
*Como prometido, segue o soneto completo de Olavo Bilac, uma verdadeira ode de amor ao nosso idioma:
“Língua Portuguesa”
Última flor do lácio, inculta e bela
És, a um tempo, esplendor e sepultura
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela
Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo
Amo-te, ó rude e doloroso idioma
Em que da voz materna ouvi: “meu filho”
E em que Camões chorou, no exílio amargo
O gênio sem ventura e o amor sem brilho.”